A "bagunça" na escola.
Quando se fala sobre escola pública a questão da indisciplina vem sempre junto. Sempre que digo que sou professor ouço a mesma coisa: "ah, mas hoje em dia é muita bagunça, ninguém mais respeita professor!". A famosa "bagunça", assunto principal das salas de professores, aparentemente é o grande fantasma do profissional da educação pública. Ninguém duvida que o salário é ruim, mas muitas vezes é ela que faz os professores ficarem sem dormir.
A "bagunça" está na cabeça de todos os educadores e gestores. A conversa paralela, o cutucão no colega, o grito sem explicação, a piada fora de hora, o batuque na mesa e muitas outras ações são comumente definidas como "bagunça", aquela ação dos jovens que foge da regra e supostamente atrapalha o processo de aprendizagem. O tempo todo os professores se deparam não só com a típica conversa paralela, mas com jovens subindo nas carteiras, rolando pelo chão, fugindo da sala, organizando brigas e tantas outras coisas mais.
Mas o que fazer perante essas situações? Como conseguir trabalhar e envolver os jovens no trabalho sem condutas autoritárias?
Esse é o ponto. Essa reflexão partiu dos comentários do último texto do blog ("Não sorria para os alunos!"), onde muitos professores se identificaram com a situação descrita enquanto outros criticaram a "defesa dos alunos". Para quem está fora do cotidiano das escolas pode parecer absurdo, mas é comum gestores e professores conservadores criticarem colegas por "defenderem os alunos" e "estimularem a bagunça". Na primeira vez que tentei trabalhar no pátio com alunos de uma escola fui imediatamente impedido pela coordenação que gritava sobre o problema "bagunça".
Essas posturas autoritárias que parecem a única forma de se colocar "ordem na sala" ou de se conseguir "passar lição" sempre passam pelo desrespeito contra os estudantes, simbolizado pelo velho cala a boca tão comum nas escolas. Como defesa contra o desgaste psicológico provocado pelas péssimas condições da educação pública, os professores adeptos do cala a boca e outras formas de coerção vêem essa como a única forma de se "controlar a bagunça".
Esse tema é difícil pois tem a ver com nossa saúde, com nossas esperanças e frustrações. É óbvio que a categoria não é sádica em relação aos estudantes mas a relação entre autoridade e produção de conhecimento em uma sala de aula é complexa. Quem nunca se sentiu desanimado com uma classe? Quantas vezes preparamos aulas para sermos ignorados pela maioria dos alunos? Quantos horas levamos resolvendo conflitos ao invés de debater os temas de estudo? Muitos afastamentos e exonerações tem a ver com essas questões, com essa sensação de enxugar gelo que vai desgastando a saúde física e mental.
Nas salas de professores a solução imediata é culpar os alunos. Se o problema central é a "bagunça" e os estudantes são os causadores dela, naturalmente o comportamento dos estudantes é visto como eixo do problema. Nessa visão os alunos "atrapalham" as aulas por uma questão moral, seja pelo desejo de desrespeitar os professores, pela falta de valores familiares ou por uma falha de caráter disseminada nas últimas gerações de estudantes (afinal, "antigamente era diferente").
Conseguir mobilizar os jovens, fazê-los participarem das atividades ou mesmo conquistar alguns minutos de silêncio reflexivo são tarefas que marcam o cotidiano do docente, e a impossibilidade de atingir essas dinâmicas básicas é a explicação para todo comportamento marcado pelo autoritarismo, pela ameaça, pelo silenciamento e pela alienação na burocracia das rotinas escolares.
Precisamos pensar em outra saída para a "bagunça", é disso que se trata. A "bagunça" é um termo que não existe pedagogicamente e passa normalmente como "desrespeito" nas advertências escritas, onde o "aluno bagunceiro" é sempre aquele que não obedece o professor e por isso atrapalha as aulas, ao contrário dos "alunos comportados", mais silenciosos e que acatam orientações de forma passiva.
Normalmente as punições decorrentes da "bagunça" tem a mesma história. Tal aluno realiza uma conduta inadequada e é advertido pelo professor, rebate ou ignora a argumentação e mantém a postura problemática, sendo então advertido e punido. Para o professor que vive essa situação sucessivamente é um desgaste e tanto mas olhando de fora fica mais fácil perceber que a "bagunça" é também uma forma de comunicação dos jovens, é uma expressão oral (conversas paralelas), musical (batuques, cantorias), corporal (se levantar, andar pela sala). A "bagunça" parece uma voz de quem está na escola justamente desenvolvendo ferramentas de criação e expressão.
Não se trata de defender comportamentos anti-sociais e preconceituosos que devem ser tratados com grande rigor, mas de pensar que grande parte da chamada "bagunça" é a resposta a um modelo escolar que treina os jovens prioritariamente à obediência e o silêncio, que normatiza padrões comportamentais interessantes ao mercado de trabalho. Esse modelo não prioriza a produção de conhecimento mas sim sua reprodução vazia e descontextualizada, e a "bagunça" é muitas vezes a resistência pouco planejada porém honesta de estudantes que não caem nessa história.
Com salas lotadas, poucos espaços e instrumentos pedagógicos, sem computadores, laboratórios ou mesmo livros, muitas vezes sem possibilidade nem de tirar cópias, as escolas mudam de caráter e tornam-se depósitos de jovens onde cabe aos professores-carcereiros basicamente a vigilância e a punição. Nesses casos a resistência dos jovens tem razão de ser, e não pode ser vista somente como algo que atrapalhe a vida dos professores.
Acabar com a "bagunça" dando sentido aos estudos e voz aos estudantes é urgente e necessário. A escola pública precisa de uma mudança radical mas é possível ter uma relação melhor com os estudantes e desenvolver a autoridade sem recorrer ao autoritarismo ainda que a escola não seja ideal. Algumas ferramentas parecem dar certo nesse caminho tortuoso:
* Conhecer as referências dos estudantes: Os professores têm uma experiência social diferente dos estudantes e precisa se aproximar de referências para melhorar a comunicação e estabelecer símbolos e exemplos que façam mais sentido aos jovens. Não se trata de conhecer minúcias da música ou do programa da moda mas de ter curiosidade científica sobre a vida das crianças e adolescentes, e se livrar do preconceito geracional tão comum e leviano. Uma abstração sem nenhum significado concreto nunca será atraente a um ouvinte inicial, precisamos de pontes com os jovens.
* Debater um Projeto Político Pedagógico: Na grande maioria das escolas o PPP é apenas um documento formal escrito somente para ser armazenado, e isso é uma das maiores causas de conflitos. O trabalho com projetos, as atividades extracurriculares, as salas ambientes e tantas outras propostas que podem mudar a rotina da escola precisam de um debate profundo do PPP para acontecerem de fato. Quando a escola tem um projeto próprio assimilado por toda sua comunidade os estudantes tem mais espaço de ação e de voz, e vão ter ações mais construtivas do que em escolas onde a orientação é ficar calado e ser vigiado.
* Ter uma conduta democrática: A posição de autoridade do professor não é moral, vêm de seu aprofundamento em determinada área. Sendo assim o que liga professores e estudantes em uma sala é a aprendizagem e os estudantes tem plenas condições de debater e decidir coletivamente dinâmicas de aula. É preciso consultar os jovens em todos os assuntos e mesmo que o resultado não seja o esperado isso é parte do processo democrático.
* Debater o tempo: Debater o tempo com os estudantes é uma ferramenta fantástica. A "bagunça" esta normalmente associada à falta de tempo livre e por aí se pode mudar, o tempo livre em sala pode ser uma ferramenta que atenua os conflitos e permite relações mais respeitosas entre professores e alunos. Tive ótimas experiências aceitando 15 minutos livres em uma aula de 50 minutos, e dessa forma conseguia bastante atenção e concentração no restante da aula, o que fazia a diferença. Os estudantes podem ter atividades para fazer, mas o que vale nesse caso é a autonomia deles em decidir entre a atividade ou outra coisa, tendo consciência do compromisso e da avaliação futura.
* Estabelecer termos respeitáveis de convivência: Entender as expressões da bagunça não significa tolerar falta de respeito, preconceitos e coisas do tipo. Na verdade trata-se de gastar energia nas questões maiores, nas escolas são mais comuns as punições por conversas paralelas do que por racismo e isso mostra a distorção na forma como os educadores vêem a questão da convivência. Casos de vandalismo e outros do tipo devem ter ações resolutas, que sirvam também para a reflexão de outros estudantes, mas todos os procedimentos devem ser realizados com serenidade. Adultos gritando com adolescentes nunca resolverão o problema, são necessárias ações efetivas e acompanhamento.
* Conversar com os estudantes: Ouvir os estudantes é sempre o princípio, não é possível educadores conduzirem situações apenas através de juízo de valor. Os jovens tem uma cultura própria e isso deve ser levado em conta sempre. Além disso eles estão sim dispostos a ouvir e debater, desde percebam que o convite ao debate é sincero. É comum a intimidação seguida da pergunta "você não tem nada pra dizer?" e isso não ajuda na comunicação, os alunos devem entender claramente todos os processos escolares com suas limitações e possibilidades e serem convidados a opinar sobre esses processos. Um ambiente democrático gera estudantes mais autônomos, conflitos de melhor qualidade e debates mais próximos do ambiente científico.