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Não sorria para os alunos!


Alto da Alegria visto da EMEF Teodomiro Toledo Piza

"Não sorria para os alunos!"

Essa foi a orientação da coordenadora pedagógica antes de me deixar naquela 7ª série. Tinha chegado na escola há menos de 30 minutos para me apresentar como professor e estava bastante empolgado com a primeira aula na rede oficial.

A dificuldade começou quando cheguei pois o portão ficava trancado e o atendimento era feito através de várias grades, sob gritos. Esse formato de prédio cheio de muros e grades, parecido mesmo com um presídio, é a regra da arquitetura escolar. Uma vez contei seis camadas de grades entre a sala de aula e a rua, a movimentação dentro das escolas é muito restrita mesmo para coisas básicas e a explicação é clássica: assim como ninguém de fora pode entrar, ninguém de dentro pode sair. Depois de um tempo de gritos entre as grades, entenderam que eu era o professor novo e abriram o portão.

Lição um: As grades são para a "segurança".

O procedimento foi muito rápido: "assine aqui", " me dê os documentos", "aqui está seu horário". No fim, a funcionária me avisou que eu poderia entrar em sala já naquele dia, o que me deixou bastante feliz. De certa forma esperava esse momento desde a adolescência, sempre quis ser professor e outra profissão nunca passou pela minha cabeça. Compreendendo a seriedade da situação, perguntei sobre a coordenadora pedagógica e fui até sua sala.

Minha chefe imediata era um tanto carrancuda e não tinha informações muito relevantes sobre os estudantes em si. Me passou um papel com o calendário escolar, entregou os diários de classe e me deu uma chave de ferro daquelas conhecidas na rede pública. Na breve conversa que tivemos, falou que a escola era complicada e que haviam muitas brigas e desrespeito, que os estudantes eram difíceis e eu deveria "enfrentá-los".

Lição dois: Professores estão de um lado e alunos de outro.

Aquela sala de 7ª série ficava em outra ala da escola, chamada pelos jovens pelo nome sugestivo de "pavilhão". Conforme íamos por escadas e corredores era evidente o sucateamento, a tinta desgastada e as paredes sujas que davam um ar bastante duro para o lugar, cenário piorado pela falta de funcionários. No início e no fim de cada corredor haviam grades com cadeados que impediam a circulação de alunos enquanto dois inspetores-carcereiros circulavam com suas chaves em uma área que necessitaria de no mínimo seis profissionais.

Quando entramos no corredor os estudantes estavam espalhados e ignoraram nossa chegada. A coordenadora pediu para entrarem e teve como resposta mais brincadeiras e justificativas em prol da "liberdade", e então ela soltou um grito alto e estridente que fez todos se assustarem e correrem. Como se fosse um jogo, eles entraram e ela se deu por satisfeita. O que marcou foi sua última dica antes de sair: Não sorria para os alunos!

Entrei na sala atordoado pelo conselho, dar aulas sempre foi o projeto e ter uma boa relação com os estudantes era parte importante dele. Quando entrei a turma estava sentada e olhando fixamente para mim, todos com seus 13 ou 14 anos, só esperando o que viria do próximo professor. Tentei manter a solenidade e até engrossei um pouco a voz, falei meu nome, minha disciplina e sorri.

Então eu entendi o conselho da chefe. Na mesma hora eles começaram a conversar simultaneamente e alguns levantaram das cadeiras. Um menino mais infantil se jogou no chão (sei lá por que) e eu continuei minha fala com um ruído insuportável. Enquanto pedia atenção de alguém que não conhecia, outro desconhecido começa a conversar do outro lado da sala, mais ou menos como se eu não estivesse por lá.

Lição três: Você precisa mostrar quem manda.

Estudei a vida inteira em escola pública e sabia bem o que esperar, mas ainda sim fiquei meio abalado. Um professor que não recebe atenção parece um ator apresentando para um teatro vazio, é uma sensação que mistura frustração, solidão e até um pouco de raiva. É óbvio que não defendo esse sentimento neurótico mas quem trabalha na educação sabe do que se trata, isso adoece a categoria e faz com que colegas desistam da profissão por não aguentar mais o peso do cotidiano em sala de aula.

Não gritei com ninguém naquela aula, e nem nas outras. Não mandei ninguém calar a boca (como infelizmente é comum) e confesso que perdi um pouco o controle nas primeiras aulas. "Perder o controle" é tabu em escolas que valorizam a obediência e a pura reprodução de dados, onde o bom profissional é aquele que "controla" os jovens. Por instinto e empatia preferi optar por certo descontrole, precisava conhecer a turma e seria impossível saber alguma coisa se optasse por ameaças e pelo medo.

Todo professor faz uma opção sobre o uso do autoritarismo, as vezes consciente e as vezes não. Os professores que amedrontam os estudantes tem maior silêncio em sala, mas não necessariamente mais atenção, e isso faz parte de concepções diferentes de educação. Uma atividade obrigatória que dure horas e faça pouco sentido dispersa qualquer público, sejam estudantes do ensino fundamental ou professores em cursos de formação.

Na tão falada questão da indisciplina na escola a saída não é tentar convencer os estudantes em favor desse modelo de escola, mas pensar com eles uma alternativa de escola onde o conhecimento faça mais sentido, para que possam repensá-lo e recriá-lo.

Se os estudantes vêem a coerência da escola apenas na hora da punição, é impossível esperar outra coisa que não o conflito. Formalmente existe um acordo entre estudantes e escola onde eles vão às aulas para obter a educação de qualidade que as escolas deveriam fornecer, e quando a rede pública não mostra essa qualidade o acordo é rompido.

Infelizmente a escola pública perde credibilidade o tempo todo. Prédios danificados, banheiros péssimos, espaços inadequados, falta dos mínimos equipamentos pedagógicos, tudo isso são sinais evidentes aos estudantes sobre essa falta de credibilidade. Se não dá pra acreditar nesse sistema, nada mais consequente que a indiferença ou até a raiva contra uma escola que aprisiona mas não ensina, e essa raiva se volta principalmente contras seus representantes mais acessíveis: os professores.

É possível fazer diferente. É possível conquistar o respeito dos estudantes através do diálogo, da reconquista da credibilidade, mas não é um processo fácil e passa em primeiro lugar por acabar com a lógica impregnada de violência das escolas. Coisas simples como o fim dos gritos e ameaças, a abolição das cópias sem sentido ou a negociação dos tempos de aula já fazem grande diferença, e com a internet cada vez mais disponível a simples reprodução de dados não faz mais nenhum sentido. Precisamos formular a todo momento um novo modelo de escola porque o antigo já faliu faz tempo, e precisamos fazer isso com os estudantes.

A relação entre estudantes e professores pode se reatar através principalmente da democracia nas escolas. Com a confiança mútua e um projeto de escola em comum, todos os setores escolares convergem na produção real de conhecimento e da luta por estrutura. Professores e estudantes não são inimigos nem a causa dos problemas uns dos outros, são companheiros na luta pelas mudanças da educação buscando uma escola mais valorizada e democrática. E companheiros precisam sorrir entre si antes de tudo.


Por que esse blog?

     Professor Periférico existe para retratar uma pequena parte da realidade cotidiana das escolas públicas e bairros do extremo sul da cidade de São Paulo, a partir da visão de um morador e professor. 

     

     Refletindo sobre educação pública, vida na periferia e o direito à cidade, a ideia é escrever sobre o dia a dia para debater grandes questões sobre a cidade.

Quem escreve?

          Profº Bruno Magalhães     

     Morador do Grajaú (distrito do extremo sul da cidade de São Paulo) e professor de História na rede municipal.

     

     Cresci no ABC paulista e atuo em diversas organizações e movimentos sociais como a Rede Emancipa de Cursinhos Populares e o Movimento Nós da Sul, além da militância no PSOL.

     

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